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Linha do Tempo da Terapia Gênica: Dos Primeiros Experimentos às Aplicações Clínicas

A terapia gênica surgiu como uma grande promessa da medicina: tratar doenças na raiz, corrigindo diretamente os genes. Mas até chegarmos às terapias atuais, o caminho foi longo, com altos e baixos. Desde as primeiras descobertas sobre o DNA e o desenvolvimento da engenharia genética até os tratamentos mais recentes, essa trajetória foi marcada por avanços e desafios. Sua evolução envolveu o aperfeiçoamento de conceitos teóricos, a compreensão do genoma humano, o desenvolvimento de novos materiais e instrumentos de engenharia genética, além do desenho de vetores e ferramentas para a modificação do DNA genômico. Neste artigo, vamos explorar essa jornada, destacando os marcos que levaram a terapia gênica do laboratório para a clínica.


A jornada da terapia gênica começou há mais de 150 anos, com os experimentos de Gregor Mendel. Suas descobertas sobre a hereditariedade estabeleceram as bases para o que hoje conhecemos como genes. Sem a compreensão de como esses fatores hereditários funcionam e determinam as características biológicas, a engenharia genética – e, consequentemente, a terapia gênica – jamais teria evoluído como conhecemos hoje.

A primeira metade do século XX foi crucial para o avanço da biologia molecular e, consequentemente, para a evolução da engenharia genética. O primeiro indício de que o DNA, e não as proteínas – como se acreditava na época –, era responsável pela hereditariedade surgiu em 1928. Esse marco veio com Frederick Griffith, que identificou o chamado "princípio de transformação" em seus estudos com a bactéria Streptococcus pneumoniae. Sua descoberta demonstrou que a informação genética poderia ser transferida entre células. Esse trabalho influenciou diretamente Oswald Avery, Colin MacLeod e Maclyn McCarty, que, em 1944, confirmaram que o DNA era a molécula responsável por essa transferência. No entanto, a comprovação definitiva veio apenas em 1952, com os experimentos de Alfred Hershey e Martha Chase, que demonstraram que o DNA era, de fato, o material genético universal dos organismos. A compreensão dos genes em nível molecular avançou significativamente em 1953, com a descoberta da estrutura de dupla hélice do DNA por James Watson e Francis Crick. Determinar essa estrutura foi um passo fundamental para revelar as propriedades básicas da molécula e sua função na hereditariedade. 

.Um pesquisador pioneiro na biologia molecular e engenharia genética foi Wacław Szybalski, cujos estudos nos anos 1960 proporcionaram contribuições significativas para a terapia gênica. Szybalski foi o primeiro a modificar geneticamente células mamíferas em laboratório, demonstrando que a introdução de genes funcionais em células deficientes poderia ser terapêutica

Os mecanismos de transferência genética entre bactérias foram elucidados pelas pesquisas de Joshua Lederberg. Ele descobriu que as bactérias podem transferir material genético por meio da conjugação, um processo em que uma bactéria doa parte do seu DNA para outra. Além disso, Lederberg identificou a transdução, um processo em que bactériofagos (vírus que infectam bactérias) transportam DNA de uma bactéria para outra. Esses conhecimentos foram fundamentais para o desenvolvimento da terapia gênica, pois abriram caminho para o uso de vírus como ferramentas para a transferência de genes em células.

Os estudos de virologia de Howard Temin foram fundamentais para o avanço da terapia gênica. Além da descoberta da transcriptase reversa em 1970, Temin mostrou que o vírus poderia integrar seu material genético ao DNA de outra célula. Na época já se especulava sobre a terapia gênica e como os vírus poderiam ser usados para transduzir genes Essa descoberta foi crucial para o uso de vírus como vetores na modificação genética de células. Suas pesquisas contribuíram para o entendimento do mecanismo de integração de material genético no genoma e para o desenvolvimento de vetores virais úteis na entrega de genes terapêuticos. Assim, uma das primeiras tentativas de produzir um vetor viral veio da equipe de Rogers e Pfuderer em 1968.


Nos anos 1970, foram descobertas ferramentas essenciais da engenharia genética, como enzimas de restrição e ligases, que fundamentaram a manipulação de genes em ambiente laboratorial. Com esses conhecimentos, tornou-se possível trabalhar com técnicas de DNA recombinante, o que permitiu aos pesquisadores a introdução de genes seletivos em vetores engenheirados. Assim, os primeiros 70 anos de descobertas e experimentos envolvendo biologia molecular são reconhecidos como a fase inicial de pesquisa da terapia gênica.


A partir da década de 1990, a terapia gênica deu um passo decisivo com o início dos primeiros ensaios clínicos, uma fase marcada por grandes altos e baixos. O pesquisador Martin Cline, em 1990, foi pioneiro ao usar a técnica de DNA recombinante com fins terapêuticos. Seus estudos tinham como objetivo tratar pacientes humanos com beta-talassemia, utilizando um modelo ex vivo com células da medula óssea. No entanto, seus estudos não receberam autorização para serem realizados. O primeiro ensaio clínico autorizado ocorreu no mesmo ano, quando cientistas apresentaram com sucesso o primeiro teste de terapia gênica envolvendo duas meninas diagnosticadas com imunodeficiência combinada grave por deficiência de adenosina desaminase (ADA-SCID). O procedimento foi realizado no modelo ex vivo, em que células autólogas foram transduzidas com cópias funcionais da enzima ADA, cultivadas em meio de cultura e posteriormente administradas nas pacientes. Embora tenha gerado resultados mistos, com apenas uma das meninas apresentando sucesso terapêutico, este ensaio representou um avanço significativo. 


No entanto, apesar das respostas positivas iniciais, a década de 1990 também foi marcada por desafios e resultados negativos que desmotivaram o campo da terapia gênica. Muitos ensaios não produziram benefícios terapêuticos, e alguns causaram efeitos adversos inesperados, como mutagênese insercional e reações imunes. Em 1996, o NIH considerou esses ensaios clínicos prematuros devido ao conhecimento insuficiente sobre a técnica e suas implicações. O conselho recomendou um retrocesso no desenvolvimento, para aprimorar a técnica e obter mais informações sobre a eficácia, a especificidade da transferência de genes, a magnitude e a duração da expressão do transgene, a natureza dos vetores, as células-alvo, a imunogenicidade, entre outros aspectos.


O cenário piorou drasticamente com a trágica morte de Jesse Gelsinger, em 1999. Jesse, um jovem de 18 anos que sofria de deficiência parcial da enzima hepática ornitina transcarbamilase (OTC), participou voluntariamente de um ensaio clínico. No caso de Jesse, os efeitos adversos foram agressivos, com seu sistema imunológico reagindo de forma imediata após a administração de um vetor adenoviral. Ele faleceu quatro dias depois, devido à falência múltipla de órgãos, tornando-se o primeiro paciente a morrer devido ao uso de um vetor viral. Além desse caso, outros ensaios clínicos realizados por pesquisadores europeus também relataram graves efeitos adversos, incluindo o desenvolvimento de leucemia em alguns pacientes, devido à ativação de um oncogene pela inserção do transgene.


Apesar desses desafios, a segunda geração de ensaios clínicos trouxe resultados mais promissores, impulsionados pelo desenvolvimento de novas técnicas e uma compreensão mais aprofundada das células-alvo.

Esses estudos demonstraram maior eficácia na entrega dos genes terapêuticos, resultando em benefícios clínicos mais consistentes. Em 2003, a China tornou-se o primeiro país a aprovar e comercializar um produto de terapia gênica para uso clínico: o Gendicine, um vetor adenoviral desenvolvido para o tratamento de carcinoma de cabeça e pescoço. No entanto, a ausência de um ensaio clínico de fase 3 gerou debates sobre sua real eficácia.


Dois anos depois, a China aprovou outro produto de terapia gênica, o Oncorine, voltado para o tratamento do carcinoma de nasofaringe. Nos anos seguintes, a União Europeia aprovou o Cerepro, o primeiro produto de terapia gênica baseado em um vetor adenoviral a concluir um ensaio clínico de fase 3, desenvolvido para o tratamento de tumores cerebrais. Posteriormente, a Europa avançou com a aprovação do Glybera, indicado para tratar a deficiência familiar da lipoproteína lipase por meio de um vetor viral adeno-associado. Esse foi o primeiro produto de terapia gênica comercializado no Ocidente, destacando-se pelo alto custo, que o tornou a medicação mais cara da época. 


Nos anos posteriores, diversos ensaios clínicos demonstraram resultados promissores para o tratamento de doenças como amaurose congênita de Leber, beta-talassemia, SCID ligado ao X, ADA-SCID, hemofilia B e Síndrome de Wiskott-Aldrich. Em 2016, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) aprovou o primeiro produto de terapia gênica no modelo ex vivo. Em 2017, a FDA aprovou duas terapias baseadas em células com receptor de antígeno quimérico (CAR-T). No mesmo ano, a agência também autorizou o primeiro produto de terapia gênica in vivo usando um vetor viral adeno-associado: o Luxturna, para o tratamento da amaurose congênita de Leber. Em 2019, foi aprovado o Zolgensma, um vetor viral adeno-associado para o tratamento da atrofia muscular espinhal pediátrica, cujo custo ultrapassou o do Glybera, tornando-se a medicação mais cara do mundo.


Esse período de avanços foi impulsionado por novas tecnologias, entre elas o sistema CRISPR/Cas9, uma ferramenta de edição genética descoberta em 2012, com enorme potencial na terapia gênica devido à sua precisão e simplicidade na modificação do genoma. Sua aplicabilidade inclui a edição, regulação e monitoramento de genes tanto em nível genético quanto epigenético, ampliando as possibilidades terapêuticas e consolidando a terapia gênica como uma estratégia promissora para o tratamento de diversas doenças genéticas.


A terapia gênica percorreu um longo caminho desde seus primeiros experimentos até a aprovação dos primeiros produtos comerciais. Com avanços constantes em engenharia genética e biotecnologia, as perspectivas para o futuro são promissoras. Embora desafios ainda existam, como a redução de custos e o aprimoramento da segurança, novas tecnologias, como CRISPR/Cas9, têm ampliado o potencial dessa abordagem terapêutica. Além das doenças raras, a terapia gênica tem demonstrado aplicações em câncer, distúrbios neurodegenerativos e até doenças cardiovasculares.


Referências














 
 
 

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